Tuesday, September 15, 2009

Saudade, Tempo, Espaco

Email repassado:

"Escapou-me ontem, à noite, esta lamentação: acham-se no tempo e não no espaço, as caras paisagens. Verifiquei esse angustiante fenômeno quando, em 1924, fui à Vila pela última vez. O Borba já havia morrido, a fazenda passara a outras mãos e as velhas já aqui estavam com sua extravagante bagagem. [...]



Em vão busquei nas linhas, cores e aromas de cada objeto ou de cada perspectiva, que se apresentavam aos meus olhos, as linhas, cores e aromas de outros dias, já longínquos e mortos.

Inútil tentativa de viajar o passado, penetrar no mundo que há morreu e que, ai de nós, se nos tornou interdito, desde que deixou de existir, como presente, e se arremessou para trás. Vila Caraíbas, a montanha, o rio, o buritizal, a fazenda, a gameleira solitária no monte – que viviam em mim, iluminados por um sol festivo de 1910, ou apenas esboçados por um luar inesquecível que caiu sobre as coisas, naquela noite de 1907 – ali já não estavam. Onde pretendi encontrar a alma das épocas idas, não encontrei senão pobres espectros. [...]



Não voltarei a Vila Caraíbas. As coisas não estão no espaço, leitor; as coisas estão é no tempo. Há nelas ilusória permanência de forma, que esconde uma desagregação constante, ainda que infinitesimal. Mas não me refiro à perda da matéria, no domínio físico, e quero apenas dizer-lhe que, assim como a matéria se esvai, algo se desprende da coisa, a cada instante: é o espírito cotidiano, que lhe configura a imagem no tempo, pois lhe foge, cada dia, para dar lugar a um novo espírito que dela emerge. Esse espírito sutil representa a coisa, no momento preciso em que com ela nos comunicamos. Em vão o procuramos depois: só veremos outro, que nos é estranho.



Na verdade, as coisas estão é no tempo, e o tempo está é dentro de nós. A essência das coisas, em certa manhã de abril, no ano de 1910, ou em determinada noite primaveril, doce, inesquecível noite, fugiu nas asas do tempo e só deveremos buscá-la na duração do nosso espírito.”



(Cyro dos Anjos, O Amanuense Belmiro, Ed. Globo, 2006, págs. 92 a 94)

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