Monday, June 18, 2007

Santo Agostinho - Alma

[Extraído na íntegra de:

http://espaco-de-paz.awardspace.com/sta_poder_da_alma.html]


[English version at: Saint Augustine - On Magnitude of the Soul]


Santo Agostinho - O poder da alma sobre o corpo, nela mesma, e nos sete graus de sua magnitude (retirado do livro "Sobre a Potencialidade da Alma")

Quem dera podermos perguntar essas coisas a um sujeito muito sábio, e que também fosse eloquente, e homem perfeito na virtude. Imagino o que ele poderia nos ensinar, explicando sobre o poder da alma no corpo, em si mesma e diante de Deus, de quem ela, enquanto se mantém na virtude, está muito próxima, e nele tem todo o bem e o sumo bem.

Mas, faltando alguém aqui que nos ensine, atrevo-me a não decepcionar a sua vontade de saber, e isso é de algum modo um exemplo do que pode a alma, quando eu experimento assim até onde posso saber.

Inicialmente, limite a sua expectativa, nem suponha que vou falar tudo sobre a alma (ou que inclua os princípios vitais vegetativo e sensitivo) mas falarei somente da alma humana racional, a única digna de referência, se é que nos preocupamos connosco mesmos.

Primeiro grau

A alma, como podemos ver em todos os seres humanos, vivifica com sua presença este corpo terreno e mortal, ela unifica-o, e o mantém organizado como corpo vivo, e não permite que se dissolva nos elementos de sua composição orgânica. Faz com que os alimentos sejam igualmente distribuídos na conservação de todo o organismo, conserva a harmonia e proporção dos membros, não só em sua aparência, como no crescimento e reprodução.

Mas estas coisas podem ser entendidas como comuns aos homens e às plantas (= vida vegetativa), pois vemos e sabemos que a espécies vegetativas conservam as suas estruturas, também se alimentam, e reproduzem segundo a sua espécie.

Segundo grau

Suba mais um pouco e contemple o poder da alma em relação à vida sensível, onde o viver é manifesto de modo mais evidente. E não devemos dar atenção a não sei que tipo de impiedade, inteiramente bruta, e mais de madeira que as plantas, cujos defensores dizem que a videira sofre quando se colhem uvas, ou que planta sente o corte dos ramos, inclusive escuta e vê. Não é hora de falar de tal erro sacrílego.

Como eu tinha proposto, observaremos o poder da alma humana sobre os sentidos corporais e sobre o movimento do corpo, naquilo que este corpo é animado, e sob tais aspectos nada temos a ver com as espécies que fixam raízes no solo.

Concentra-se a alma no tacto, e por meio dele sente e identifica o quente e frio, o áspero e o suave, o duro e o macio, o leve e o pesado. E saboreando, cheirando, ouvido e vendo, distingue inúmeras diferenças de gostos, cheiros, sons e formas. Apetece ali o que lhe agrada à natureza corporal, repelindo o que desagrada. Por algum tempo se retira dos sentidos, recuperando as forças no descanso, onde deixa correr livremente a imagem das coisas obtidas pelos sentidos, e o faz no sono e nos sonhos. Através do exercício, movimenta-se prazerosamente, compondo a harmonia dos membros. Enquanto possível, procura a união dos sexos, e da natureza de dois faz uma só, no amor e na sociabilidade. Não só gera filhos, como os abriga, protege e alimenta. Acostuma-se ao meio ambiente, e às coisas que lhe sustentam o corpo, das quais dificilmente se quer afastar, como se fossem uma parte sua. E à força do costume, que nem a separação das coisas impede, chama-se memória (sensível).

Ainda assim, ninguém pode negar que os irracionais também fazem todas estas coisas sensíveis (vida sensitiva).

Terceiro grau

Suba mais um grau, e chegue ao terceiro, este próprio do homem. Pense na lembrança de coisas inumeráveis, não decorrentes apenas do costume, ou dos hábitos repetidos, mas da intenção aplicada nas coisas intencionalmente pretendidas, e na conservação de tantas coisas obtidas. São muitas variedades de artes e técnicas, no cultivo dos campos, na construção de cidades, e realizações de todos os tipos de grandezas produzidas. Invenção de tantos signos representativos, na escrita, nos gestos e na palavra proferida. Em todos os sons criativos, como na pintura e na escultura, na variedade de idiomas, nas instituições sociais, em tanta coisa nova surgida sempre, como na recuperação de outras. Na variedade de livros, e em todos os monumentos erguidos e entregues ao cuidado das gerações futuras. Na variedade de ocupações, nos poderes constituídos, nas honras e dignidades, seja na família como na sociedade. Nas cerimónias profanas e sagradas, na paz e na guerra, e tudo produzido pela humana potência de raciocínio e imaginação. Pense na caudalosa produção oratória, na arte poética, e muitas outras criações destinadas à diversão, aos desportos, à prática musical, a precisão da arte de calcular, e as conjecturas do futuro a partir das realizações do presente.

Grandes são estas coisas próprias somente do ser humano. Ainda assim, serão comuns aos estudiosos e aos ignorantes, aos bons e aos maus.

Quarto grau

Passe ao quarto grau, onde começa a bondade e o louvor verdadeiro. Aqui a alma ousa sobrepor-se não somente ao corpo — que é parte integrante do universo — mas ao mesmo universo. Não considera coisas suas os bens deste mundo, aprende a estimar sua potência e beleza acima destes bens, pois distingue os valores, e menospreza os bens apenas terrenos. Quanto mais aproveita o uso destes bens, tanto mais deles se afasta, libertando-se de toda a imperfeição, fazendo-se mais pura e mais perfeita, fortificando-se contra tudo o que pode afastá-la do seu propósito e decisão. Aprecia o convívio social, não deseja a outrem o que não quer para si mesma, obedece à legítima autoridade e aos preceitos dos mais sábios, reconhecendo que Deus fala por meio deles.

Nesta nobre actividade da alma existe ainda muito esforço e muita luta contra os empecilhos e seduções do mundo. No mesmo esforço pela sua purificação, existe ainda um certo medo da morte, pequeno às vezes, e muito grande em certos casos. Mas deve crer seguramente que todas as coisas estão sob a guarda e providência justa de Deus, e não há morte acontecida sem justiça, mesmo quando causada pela maldade humana (e somente às almas inteiramente purificadas é dado ver como isso é verdadeiro). Mas se teme a morte a este ponto, já estando no quarto grau, ou será por ter uma fé ainda fraca na providência justa, ou por menor tranquilidade interior — necessária para entender o que parece difícil — ou porque a tranquilidade é perturbada pelo medo.

Progredindo neste grau, ela conhece sempre mais a diferença entre a alma purificada e a pecadora, e tanto mais receia que, deixando esse corpo, menos a possa Deus suportar machada, que ela a si mesma nesse estado. E não há nada mais difícil que temer a morte e afastar as ciladas do mundo, como exigem as situações perigosas decorrentes.

Mas é tão grande a alma, que pode fazer tudo isso com a protecção de Deus sumo e verdadeiro, cuja justiça conserva e governa o universo. E tal justiça conservadora faz com que as coisas não somente existam, mas existam numa forma que não pode ter outra melhor.

Encomenda-se a Deus, piedosa e confiante, para que Ele ajude seu aperfeiçoamento, no difícil trabalho da purificação.

Quinto grau

Uma vez chegada ali, isto é, estando a alma livre de toda imperfeição, e purificada de seus pecados, alegra-se finalmente nela mesma, nada mais teme, nem se intranquiliza por coisa alguma, a menor que seja, nos assuntos interiores.

Este é o quinto grau. Uma coisa é procurar a pureza de coração, outra coisa é já ter atingido esse estado. Coisa distinta é a acção com que ela mesma se purifica do mal, outra coisa é não consentir mais no pecado.

Nesse estado ela pode entender plenamente sua grandeza, e, estando convencida, tender realmente para Deus, com imensa e inaudível confiança, ou seja, tender à contemplação mesma da verdade, e ao altíssimo e secretíssimo prémio pelo qual se esforçou tanto.

Sexto grau

Mas a tendência a compreender aquilo que realmente é a alma, e o é de modo mais sublime, vem a ser também a mais alta expressão da alma, e nada existe mais perfeito, melhor e mais correcto. Este é o sexto grau de sua actividade. Uma coisa é purificar o olhar da mente, para não olhar inútil e temerariamente, na visão errada. Outra coisa é conservar e reafirmar a sua integridade moral. E outra ainda é dirigir o olhar da mente de modo sereno e adequado ao que deve ser visto.

Os que tentam fazer isso sem antes estarem purificados e íntegros são ofuscados pela mesma luz da verdade, a ponto de desacreditarem em algo de bom, e na mesma verdade. E censurando a medicina da purificação, refugiam-se em alguma paixão ou prazer miserável, nas trevas que esta enfermidade os obriga. E por isso diz o profeta muito acertadamente e por divina inspiração: “Cria em mim, ó Deus, um coração puro, e renova em minhas entranhas o espírito de rectidão” (Sb 50,12).
Entendo que espírito de rectidão é o que impede a alma de se desviar e falsear na procura da verdade. E ele não se renova se ela antes não tiver a pureza, ou seja, se o pensamento não se afasta antes de toda paixão, purificando-se do ranço das coisas mortais.

Sétimo grau

Certamente é a mesma visão e contemplação da verdade o que constitui o sétimo grau, o mais elevado grau da alma, e já não é um grau, é certa mansão ou morada onde se chega através dos graus.

E nem sei com que palavras dizer das alegrias do bem supremo e verdadeiro, ou que inspiração terá a alma em sua serena eternidade. Grandes almas e de insuperável santidade falaram nisso, quando julgaram oportuno. Cremos que também viram tudo isso, e continuam vendo eternamente.

Ouso dizer isso de modo claro. E se nos conservamos no rumo que Deus manda seguir, e ali mantivermos a constância, chegaremos pelo poder divino à Sabedoria de Deus, Virtude de Deus, suprema causa e supremo autor, princípio supremo de todas as coisas, seja como for o modo que usamos para falar de algo tão elevado.

Entenderemos então como são verdadeiras as coisas nas quais nos mandaram crer, e como a Igreja nos alimentou saudavelmente como nossa mãe, e qual o proveito do leite da doutrina que São Paulo diz ser dado aos pequenos (1Cor 3,2). Quando alguém ainda precisa do leite materno, é útil receber tal alimento. Seria vergonhoso depois de crescido. Desprezá-lo quando se precisa dele é lamentável. Criticar o alimento ou detestá-lo, é criminoso e ímpio. Porém, conservar e distribuir convenientemente o alimento, é louvável prova de amor.

Veremos também que a natureza corpórea sofre mudanças e dificuldades, obedecendo neste mundo à lei divina, mas cremos na ressurreição da carne, na qual alguns acreditam muito pouco, e outros negam, mas a temos como absolutamente certa, mais que a certeza de que o sol do ocaso nascerá novamente no outro dia.

Mas existem os que ousam fazer troça da humanidade de Cristo, assumida pelo poderoso, eterno e incomutável Filho de Deus. E a estes desprezamos, como a crianças que, vendo um artista que reproduz imagens gravadas, imaginam que só podemos pintar uma figura humana copiando de uma outra.

É tão grande a alegria de contemplar a verdade, seja sob que aspecto a contemplemos, é tamanha a perfeição, a fé inabalável nas coisas verdadeiras, que ninguém suporá ter sabido realmente alguma coisa ante, ao supor saber algo, sem ter contemplado a verdade ela mesma.

E para que a alma não seja impedida de se unir completamente à verdade, desejaria então — como recompensa suprema — a morte que antes temia, ou seja, desligar-se totalmente deste corpo.

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